Foi quando eu estava derramando a areia usada de Mouche num saco de lixo que vi.
Tarefas. Elas eram importantíssimas no lar dos Pitt. Não porque houvesse tantas. Era porque havia tão poucas, graças à Petra, a au pair, Marta, a empregada, e Jorge, o jardineiro, que não restava muita coisa para a gente fazer na casa, e por isso eram tão valorizadas.
Mas tia Jennifer e tio Brad acreditavam, tanto quanto meus pais, que os filhos precisavam aprender a ter responsabilidades, de modo que alguns dias depois da minha chegada – assim que o hematoma teve chance de sumir – houve alguma discussão sobre qual seria a minha "tarefa".
- Ela não pode ficar com o meu trabalho – havia declarado Braddy.
Estávamos comento o filé-mignon que Petra havia prometido fazer na noite da minha chegada... só que com algumas noites de atraso.
– Sou encarregado de esvaziar a lavadora de pratos quando Maria não está aqui e de alimentar os koi. E gosto dos meus trabalhos.
- Ela pode ficar com os meus trabalhos – murmurou Miley. Justo naquela manhã ela havia decidido que era vegetariana e tinha obrigado Petra a lhe preparar tofu em vez do filé-mignon. E me pareceu que estava se arrependendo da decisão, se o modo como olhava para o meu bife indicava alguma coisa. – Encher a lavadora de pratos e de cuidar da caixa de areia da gata. Não sei por que eu tenho de limpar a caixa da gata todo dia.
Tia Jennifer olhou sombria para My.
- Porque foi você que quis a gata. Você disse que assumiria toda a responsabilidade por ela.
My revirou os olhos.
- Aquela gata é o animal mais ingrato que eu já vi. Ela dorme com Ashley toda noite, mesmo que seja eu quem lhe dê comida e limpe a caixa.
Ashley, que estava comendo seu filé-mignon estilo hambúrguer, entre duas fatias de pão branco e encharcado de ketchup, rebateu indignada:
- Talvez se você não gritasse com Mouche o tempo todo porque solta pêlos em suas roupas pretas ela quisesse dormir mais com você.
Miley revirou os olhos de novo:
- Só dêem a Jinx a tarefa da caixa da gata.
Tia Jennifer não aprovou o novo arranjo – eu ficar com o serviço de Miley, de monitorar a caixa de areia de Mouche –, mas foi o que aconteceu. Também me ofereci para ficar com Braddy e Ashley na tarde em que o horário de aulas de Petra não lhe permitia voltar à cidade a tempo, uma tarefa formalmente realizada por Marta... Acho que porque ninguém tinha conseguido obrigar Miley a fazer isso. Nem mesmo seus pais.
Mas, afinal, não me incomodei, exatamente. Gostava mesmo dos meus primos mais novos, porque me lembravam dos meus irmãos menores, de quem eu sentia muito mais falta do que havia imaginado que ocorreria – a aspirante a modelo Dallas, de 13 anos; o fanático por beisebol Jeremy, de 10; Maddison de 7 anos, obcecada pelas Bratz; e especialmente Josh, de 4 anos, o bebê da família.
Ter tarefas a realizar, como as que eu havia deixado para trás, fez com que eu me sentisse menos solitária e mais fazendo parte da família Pitt, o que, por sua vez, fazia com que eu sentisse menos falta da minha.
Selena quase infartou quando soube que limparia a caixinha da gata. Ela morre de nojo dessas coisas, nem sei o que faria se sua mãe a obrigasse a cuidar das necessidades de seu cachorro. E se tivesse um filho, então? Nem dá pra imaginar.
Mas, quando o dia da semanada chegou e tia Jennifer me deu uma nota de cinquenta dólares nova em folha, eu soube que não estava mais em Iowa.
Olhando para o dinheiro, perguntei:
- Para quê é isso? – pensando que ela devia querer o troco. E pelo que exatamente estava me dando o dinheiro.
- Sua semanada. – Tia Jennifer entregou uma nota idêntica a My. Braddy e Ashley, cujas necessidades financeiras aparentemente eram menos dramáticas, receberam uma nota de vinte e uma de dez, respectivamente.
- Mas... – Olhei para a nota. Cinquenta dólares? Em troca de limpar a caixa de areia de Mouche e pegar as crianças na escola uma vez por semana? – Não posso aceitar isso. A senhora já paga a escola, deixa eu ficar aqui e tudo o mais...
Eu suspeitava de que os Pitt tinham feito mais do que isso, até. Não podia ter certeza, mas achava, pelas coisas que ouvi na escola, que não era qualquer um que era aceito na Chapman. Havia uma lista de espera, e pelo jeito eu havia pulado à frente, devido a uma "doação" que os Pitt haviam feito em meu nome. Não sei se meus pais sabiam disso, mas certamente eu sabia, o que me deixou mais consciente do que nunca do quanto eu devia aos Pitt. Em especial porque eu havia trazido junto o motivo para minha necessidade da transferência para a Chapman.
Eu não merecia nem mais um centavo do dinheiro deles.
Mas parecia que eles achavam o contrário.
- Honestamente, Demi – disse tia Jennifer –, eu lhe devo pelo menos isso só por cuidar do Braddy e da Ashley toda quarta-feira. Qualquer babá em Manhattan cobraria muito mais.
- É, mas... – tipo, eu vinha cuidando dos meus irmãos, de graça, durante a vida inteira. – Verdade, acho que não...
- Meu Deus, Jinx. – Miley balançou a cabeça, incrédula. – Você pirou? Pega logo o dinheiro.
- Concordo – disse tia Jennifer. – Pegue o dinheiro, Demi. Tenho certeza de que neste fim de semana você vai querer ir ao cinema ou alguma coisa com seus novos amigos da escola. Aproveite. Você merece.
Não observei exatamente que não tinha novos amigos da escola. Ah, havia o pessoal da orquestra, que gostava de mim, depois que eles superaram o fato de uma estranha ganhar o posto de segundo violino logo no primeiro dia. Se você consegue tocar um instrumento, sempre vai se dar bem com o pessoal da orquestra.
E havia Taylor, com quem eu me sentava na hora do almoço. Mas na verdade, ela era amiga de Miley – ainda que não participasse do lance coven de My, Chelsea e Emily, e só parecia estar ali, na verdade, porque era onde seu namorado, Robert, se sentava com Liam. Miley também me deixava sentar junto, mas nunca sem dar a impressão de que, ao permitir isso, estava me concedendo um favor gigantesco. Eu sabia que ela preferiria que eu me sentasse com o pessoal da orquestra. Eu também preferiria me sentar com eles.
Mas não conseguia pensar num modo de fazer isso sem provocar um comentário sarcástico de Miley. Porque, mesmo sabendo que ela não me queria ali, tinha certeza de que ela gostaria ainda menos se eu a abandonasse. Ela não havia sido exatamente a Sra. Amigável desde a conversa sobre Branwen.
Mesmo assim, mesmo sentindo que não era justo, arranjei um uso para meu súbito ganho financeiro no primeiro dia em que troquei a areia da caixa de Mouche.
Os Pitt gostavam daquele tipo de areia que formava bolos, que é fácil limpar, já que só é preciso raspar com uma pazinha com ranhuras. Mas ou a areia era de qualidade inferior ou Miley não a trocava há muito tempo, porque, não importando o quanto eu raspasse, ainda fedia... muito. O odor de amônia da urina de gato literalmente enchia a lavanderia onde ficava a caixa de areia. Senti pena de Marta, que tinha de lavar roupa ali. Assim, achei um saco de areia de gato fechado e decidi dar a Mouche um suprimento novo, depois de jogar fora o velho.
A princípio não entendi o que via. Achei que tinha de ser um acidente. Depois vi a fita adesiva e percebi que não havia sido acidental. Joguei longe a caixa vazia, como se ela tivesse pegando fogo.
Porque, mesmo eu tendo jogado fora toda a areia velha, a caixa não estava realmente vazia. Não completamente. Presa com fita adesiva no fundo, previamente escondida sob vários centímetros de areia de gato velha e fedorenta, havia uma foto. Uma foto que, apesar de arranhada e consideravelmente desbotada, eu podia ver que era de Petra.
Não pude acreditar. Realmente não pude acreditar. Porque eu sabia quem tinha posto a foto ali.
Também sabia por quê.
Só não podia acreditar que alguém – qualquer pessoa – seria tão má. Talvez, pensei, enquanto descolava cuidadosamente a foto do fundo da caixa, Miley não soubesse o que estava fazendo. Ela não podia saber. Ninguém que soubesse o que algo assim poderia fazer a alguém iria ao menos tentar... nem mesmo contra o pior inimigo...
Ah, certo. Quem eu estava tentando enganar? Miley sabia exatamente o que estava fazendo.
Motivo pelo qual eu sabia que não tinha opção além de tentar impedi-la... fosse como fosse.
Mesmo que isso significasse quebrar minha promessa.
E, tudo bem, tinha sido só uma promessa a mim mesma.
Mas algumas vezes essas são as mais difíceis de quebrar. O que era a minha intenção.
Descobri na Internet o que eu precisava... uma loja – uma loja de verdade – que vendia o que eu estava procurando. Em Hancock, uma loja assim certamente seria fechada por cidadãos ultrajados.
Mas em Nova York aparentemente isso não era motivo de preocupação. A loja, que ficava no East Village, fechava às sete. Eu tinha duas horas para pensar em como chegaria lá.
O metrô era a escolha mais lógica, mas como eu nunca havia andando de metrô em Nova York, a idéia de fazer isso me encheu de terror.
O problema era: o que poderia acontecer se eu não fizesse a viagem me enchia mais ainda de terror... só que por motivos diferentes. E que eram bem piores do que andar de metrô.
Assim pesquei um mapa do metrô numa gaveta da cozinha, onde eu sabia que tia Jennifer guardava esse tipo de coisa, e saí de casa, estudando o mapa cuidadosamente enquanto andava.
Tinha dado aproximadamente três passos quando alguém estendeu a mão e amassou o mapa na minha frente. Com o coração martelando, levantei os olhos...
... e quase tropecei quando vi que era Joe Jonas.
- Não ande pelas ruas de Nova York com a cabeça enfiada num mapa do metrô. As pessoas vão saber que você é de fora da cidade, e vão tentar se aproveitar.
Depois de ter passado todas as aulas de educação física daquela semana matando o Desafio Presidencial com ele, explorando as iguarias do que Joe chama de Cafés Guarda-Sol do Central Park, inclusive o delicioso – e misterioso – souvlaki, senti-me confortável o bastante para perguntar, ainda que com um sorriso envergonhado no rosto.
- Preciso ir ao East Village. Sabe que metrô devo pegar?
Joe, que havia tirado a mochila do ombro e obviamente estava acabando de chegar de algum lugar, pendurou-a de novo.
- Vamos.
Certo, ESSA não era uma resposta que eu tivesse previsto.
- Não – quase gritei, desnorteada. Porque ele era a última pessoa que eu queria que soubesse onde eu estava indo. Não porque ainda estivesse caída por ele... o que eu estava, claro, mesmo sabendo que isso era completamente inútil. Na verdade, no dia anterior eu tinha conseguido que Joe admitisse que estava apaixonado por Petra. A conversa – que havia acontecido na cozinha dos Pitt depois das aulas, onde eu o encontrei se recuperando de um jogo de bola com Braddy na frente da casa – tinha sido assim:
Eu, juntando toda a coragem que poderia existir em mim, depois de Petra ter finalmente saído da cozinha com Braddy, para supervisionar a lavagem de suas mãos excepcionalmente sujas antes de deixar que ele provasse os biscoitos que ela havia acabado de fazer, disse:
- Então, é verdade que você é apaixonado por Petra?
- Por que você acha isso? - Joe perguntou após ter se engasgado com um biscoito.
- Porque Robert disse, no dia em que conheci vocês, que esse é o único motivo para você vir aqui.
- E, como sabemos, Robert é uma autoridade consumada em todas as coisas, tendo uma percepção extremamente aguçada que não é de modo algum comprometida por substâncias que alteram a mente. - Joe disse num tom sarcástico.
- Quer dizer que o Robert está errado? Você nunca gostou de Petra? - Falei com o coração batendo rápido e me enchendo de esperança instantaneamente.
- Devo admitir que houve um tempo em que achei Petra bem interessante - minha esperança fora quebrada.
- Mas ela tem namorado - nem um pouco com ciúme, porque Petra realmente é interessante, além de gentil e uma cozinheira fantástica. Ok, isso é mentira. Mesmo ela sendo tudo isso eu estava sim com ciúme.
- Eu sei. Conheci o cara. Willem. É um cara bem legal.
- Mas você continua vindo aqui.
- O fato de eu vir aqui incomoda você? Porque posso ir embora - ele falou se levantando.
- Não! - Praticamente gritei, em pânico. - Só que... você sabe - falei mais calma - Fico pensando por que você ainda vem aqui. Se sabe que ela tem namorado.
- A quantidade de coisas boas preparadas aqui não é desculpa suficiente? - ele disse estendendo um biscoito, e depois o colocando inteiro na boca.
- Admita. Você ainda acha que tem chance com ela.
- Há alguém nesta casa com quem você acha que eu teria mais chance? - Meu coração acelerou. Eu! Você tem chance comigo! E também Miley, embora ele definitivamente deveria ficar longe dela, considerando aquele boneco.
- Acho que não
"A não ser... eu", pensei de novo. Mas claro que não vou dizer isso a ele, se não nem a amizade dele terei mais.
- Bom, então... - ele disse deixando a frase incompleta, parecendo achar divertido.
O negócio é que nem me importo se ele ama Petra. Porque, para começar, isso nos dá bastante assunto – não que a gente tenha carência nesse quesito, pois parecemos ter a mesma opinião sobre um monte de coisas, como política, comida, música (se bem que Joe não era muito familiarizado com música clássica), um ódio contra qualquer tipo de esporte organizado e contra o jeito deplorável com que a qualidade do seriado Seventh Heaven havia caído depois que Jessica Biel deixou de ser parte do elenco em tempo integral.
Mas nas raras ocasiões em que há uma calmaria na conversa, eu sempre podia mencionar algo relacionado a Petra – como, por exemplo, sugerir que Joe fizesse aulas de alemão para surpreendê-la perguntando como ela estava, em sua língua nativa, ou algo assim. Pessoalmente acho que ele realmente apreciou minha ajuda na tentativa de conquistá-la. O que era bom, pois ele nem suspeitava o quando eu era apaixonada por ele.
E eu, por minha vez, realmente apreciava o fato de que não precisava me preocupar com a aparência nem como agia perto dele. Não importava que meu short da escola Chapman fosse tão medonho, ou que eu entrasse no caminho dos patinadores quase diariamente e que ele precisasse me puxar para a segurança. Porque ele não estava interessado em mim nesse sentido. Éramos só amigos. Quando eu estava com Joe, podia esquecer todas as coisas horríveis das quais vivia fugindo, e simplesmente relaxar. Meu estômago nem doía quando eu estava com ele... bem, a não ser que por acaso eu pegasse a mente vagueando e imaginasse o que poderia acontecer se de algum modo Petra desaparecesse de cena, e Joe – milagre dos milagres – por acaso pensasse em mim como algo mais do que uma amiga. Era então que meu estômago embolava. Porque, bem... simplesmente porque ele estaria apaixonado por mim.
E, claro, ele havia deixado evidente como se sentia com relação a bruxas e bruxaria, e havia...
Bem. O meu passado.
E havia Miley.
Mas eu tentava falar dela o mínimo possível. Ainda não sabia se Joe sabia o quanto ela gostava dele – ou se, deixando de lado o negócio de bruxa, se ele poderia gostar dela também. Na verdade eu não sabia como qualquer cara não ficaria lisonjeado ao saber que uma garota linda como Miley gostava dele. O que não me animava em nada, porque significava que se, por acaso, ele esquecesse Petra, iria para Miley, então minhas chances eram duplamente cortadas. Mesmo assim, mesmo sendo verdade que Joe e eu eramos amigos, não eramos amigos a ponto de discutir a paixão de Miley por ele – e definitivamente não éramos amigos a ponto de eu deixar que ele soubesse aonde eu ia naquele dia.
- Não, não precisa ir comigo – falei rapidamente. – Pode só me informar como eu chego à rua Nove entre a Segunda Avenida e a Primeira?
Mas ele simplesmente balançou a cabeça.
- Na-nã-não. Você não vai até lá sozinha. As pessoas chamam você de Jinx por algum motivo, não é? Só Deus sabe que tipo de desastre poderia acontecer.
- Mas...
- Se acha que vou deixar você ir ao East Village sozinha, pirou de vez. – Ele segurou meu braço e me girou. – Para começar, ainda lhe devo servidão eterna por ter salvado minha vida, lembra? E, além disso, a estação de metrô fica daquele lado, idiota. Vamos.
Não há nada de romântico em ser chamada de idiota. Fala sério!
Especialmente porque eu sabia que de jeito nenhum Joe iria se interessar por uma violinista ruiva, filha de pastora, quando houvesse a mais remota chance de ele ter Petra, a lindíssima estudante de fisioterapia.
Então por que me senti tão ridiculamente feliz por todo o caminho? Tinha esquecido toda a minha raiva de Miley – e o nojo de mim mesma por quebrar a promessa, como sabia que ia fazer. Mal notei as hordas da hora do rush em que nos enfiamos enquanto entrávamos no trem, e não prestei a mínima atenção aos homens que pediam dinheiro no vagão nem às placas dizendo para os passageiros ter cuidado com as carteiras, nem aos policiais nas plataformas com seus cães farejadores de bombas... coisas que poderiam ter me aterrorizado – se não estivesse com Joe.
Ah, vamos encarar os fatos. Claro, ele gostava de outra garota. Mas eu estava entregue de qualquer modo. Ele havia me ganhado com aquele "gosto de focas".
Mas quando finalmente chegamos a rua Nove Leste entre a Segunda Avenida e a Primeira, percebi que Joe ia realmente me achar idiota – ou pelo menos seriamente perturbada – quando visse o tipo de loja para onde eu ia.
Diminuí o passo enquanto chegávamos perto. Pude ver a placa, cortada na forma de uma lua crescente, pendurada em cima de um toldo preto.
ENCANTOS, estava escrito. O que eu diria quando ele perguntasse – como faria sem dúvida – por que eu iria a uma loja especializada em... bem... material de bruxaria?
Joe estava me falando de um documentário que tinha visto na véspera, sobre uma equipe de cirurgiões plásticos que vão a países do Terceiro Mundo fazer cirurgia corretiva gratuita em crianças com palatos fendidos e coisas assim. Joe adora documentários. Quer estudar cinema quando entrar na Universidade de Nova York e fazer documentários sobre a vida animal do ártico, tipo focas, e sobre como estamos destruindo o habitat deles. Até havia me levado para ver suas focas – a dos zoológico do Central Park. Ele sabe o nome de todas e é capaz de identificar cada uma delas.
Escutei seu resumo do documentário com apenas meio ouvido. Estava tentando dizer a mim mesma que Joe não iria se importar com a loja aonde eu ia. Verdade, eu estava exagerando a coisa demais. Eramos amigos. Amigos não se importam com o tipo de livro que os amigos lêem, não é? Mas, assim como eu suspeitava que fosse acontecer, Joe ficou mudo quando parei na frente da loja. Não ajudou nem um pouco o fato de haver cristais e cartas de tarô na vitrine, arrumados num monte de veludo preto. Nem ajudou o fato de que, enquanto estávamos ali parados, a porta se abriu e duas mulheres totalmente vestidas de preto, com o cabelo tingido como o de Miley, saíram carregando sacos de papel e batendo papo animadas.
- Era aqui que você queria vir? – perguntou Joe, com as sobrancelhas escuras levantadas. De modo desaprovador, como eu havia suspeitado.
- Eu... – Eu havia passado a maior parte da caminhada pela rua Nove inventando uma história que esperava ser convincente. – Tenho de comprar uma coisa para minha irmã menor...
- Dallas? – perguntou ele. – Ou Maddison?
- Dallas – respondi, tentando ignorar o jorro de prazer por ele se lembrar do nome da minha irmã. O nome das minhas duas irmãs! Eu só havia lhe contado um milhão de histórias sobre elas. Não podia acreditar que ele tivesse escutado. – O aniversário dela está chegando, e achei que ela gostaria disso, além do mais acho que não dá para achar um livro desses em Iowa.
Espera. Isso pareceu tão débil para ele quanto para mim?
Mas tudo que Joe disse, em voz divertida, foi:
- Já ouviu falar da livraria Barnes and Noble? Fica só a dois quarteirões de onde a gente mora. A gente não precisaria vir até aqui, você sabe.
- Abençoados sejam – disse a mulher bonita, de cabelos escuros, que estava atrás do balcão, quando entramos.
- Ah – respondi, ficando vermelha. Por causa do que Joe devia estar pensando, que ela era tipo Nova Era, comedora de granola. – Obrigada.
Passei rapidamente pelo balcão, indo às cegas para o fundo, onde tinha visto algumas prateleiras de livros. Mesmo assim não pude deixar de ver que a loja era atulhada de ervas e velas, amuletos e calendários lunares. Havia uma gata preta numa prateleira, com o rabo estremecendo lentamente enquanto me olhava chegando. No pescoço tinha um colar de turquesas com um pentagrama pendurado onde, num gato normal, que não pertencesse a bruxa, haveria um guizo.
Estendi a mão para o livro que eu estava procurando – não um dos grandes, com capa brilhante, cheios de fotos e capítulos chamados "Feitiços de amor", do tipo que Miley e suas amigas poderiam ter escolhido, e sim uma pequena brochura sem ilustrações, que não poderia ser encontrada em qualquer cadeia de livrarias – e dei uma olhada nas últimas páginas, procurando o índice remissivo. Enquanto isso, Joe estava andando por ali, pegando coisas e examinando com curiosidade. Quando chegou à gata, parou e coçou embaixo do queixo dela. A gata começou a ronronar, tão alto que pude ouvir do outro lado da loja.
Então ele gostava de gatos, também. Au pairs, Seventh Heaven, focas, crianças... e gatos. Será que esse cara poderia ser ainda mais fofo? Um sino tocou e duas garotas entraram na loja. Duas garotas usando uniforme da escola Chapman. Duas garotas que, infelizmente, reconheci. O nó no meu estômago, que me visitava cada vez menos ultimamente, subitamente marcou presença.
A vendedora bonita atrás do balcão falou:
- Abençoadas sejam – disse para as duas novas freguesas.
- Abençoada seja – Chelsea e Emily responderam de volta para ela.
Emily dava risinhos o tempo todo.
- Quantos anos Dallas vai fazer, afinal? – perguntou Joe, aparecendo de trás de um mostruário de ervas. – Doze?
Dei um pulo e disse automaticamente.
- Catorze.
Tinha parado de examinar o índice remissivo do livro. Havia encontrado o que procurava.
Mas como iria comprá-lo sem que Chelsea e Emily notassem e informassem a Miley que tinham me visto na Encantos? Miley nunca acreditaria que eu tivesse entrado por acaso naquela loja.
Ou... acreditaria?
- Ah, meu Deus – gritou Emily quando saí deliberadamente de trás do mostruário de ervas, bem no seu caminho. – Jinx? É você?
- Ah – respondi fingindo que estava notando as duas pela primeira vez. – Oi, pessoal.
- Olha, Chelsea – disse Emily. – É a Jinx!
Chelsea, sempre a mais séria das duas, não pareceu exatamente empolgada ao me ver. Na verdade, seus olhos muito maquiados se estreitaram.
- O que você está fazendo aqui? – o olhar de Chelsea saltou para alguma coisa (ou alguém) atrás de mim, e suas pálpebras dela se estreitaram ainda mais. – Com ele?
- Ah, oi – cumprimentou Joe, enquanto dava as costas para o mostruário de calendários que estivera olhando.
- Oi – respondeu Emily. Ao contrário de Chelsea, ela não pareceu achar suspeito o fato de estar trombando em Joe e eu numa loja de material de bruxaria a aproximadamente sessenta quarteirões de onde nós morávamos. – My está aqui também? Achei que ela tinha de ir ao dentista, ou algo assim, esta tarde...
- É – falei, empurrando com nervosismo o cabelo para trás das orelhas. – É, não. My não veio. Somos só nós. Viemos porque preciso comprar um presente. Um presente de aniversário. Para minha irmã mais nova.
- Maneiro – disse Emily. Seu olhar pousou no livro que estava nas minhas mãos e ela franziu o nariz. – Mas por que vai dar essa coisa velha a ela? Este livro aqui é muito melhor. – Ela pegou o grande e brilhante. – Olha. Tem um monte de ilustrações.
- Ela pediu este – menti. – Não sei. Ela é meio esquisita.
- Está dizendo que bruxas são esquisitas? – perguntou Chelsea com sua voz grave.
- Não! – exclamei. – Nossa, não. Só a minha irmã.
- Eu acho que elas são esquisitas – comentou Joe, alegre.
Emily deu-lhe um soco de brincadeira no peito.
- É melhor ter cuidado. Ou eu jogo um feitiço em você.
- Você não sabe, Emily, mas talvez alguém já tenha jogado – disse Chelsea. Mas não parecia estar se referindo a Miley, pois estava olhando diretamente para mim.
- Não faço a mínima idéia – falei na voz mais agradável que consegui. – Bom, encontrei o que eu precisava. Podemos ir, Joe?
- Agora mesmo – ele respondeu.
- Bem, a gente se vê – falei a Emily e Chelsea.
E fui para o caixa.
- Ah, ei – gritou Emily. – Nós vamos tomar um pouco de chá espumante, lá em Chinatown, quando sairmos. Querem ir?
- Não posso – pus o livro no balcão. A vendedora bonita pegou-o com um sorriso. – Prometi aos pais de My que chegaria a tempo para o jantar.
- My – ecoou Emily com uma gargalhada. – Não deixe ela ouvir você chamando-a assim. Ela mata você.
- Ela pode matá-la de qualquer modo – murmurou Chelsea, mas alto o suficiente para que eu ouvisse.
- O que foi? – Emily parecia confusa. – O que você disse, Chel?
- Eu? – Chelsea fungou. – Não falei nada.
Joe, que havia me acompanhado, inclinou-se fingindo que estava admirando uns colares na vitrine embaixo do balcão.
- O que ela está falando? – sussurrou ele.
- Nada – respondi depressa. – É só... coisa de mulher.
- Legal – disse Joe e levantou-se. – Que tal eu encontrar você lá fora?
- Pode ser melhor.
Joe assentiu e saiu da loja, com os sinos sobre a porta tilintando em seguida.
- São dez dólares – informou a mulher atrás do balcão.
Entreguei-lhe minha nota de cinqüenta novinha em folha.
- Aposto que Miley vai ficar realmente interessada em saber que você veio aqui com o cara dela – disse Chelsea, com a voz dura.
- O quê? – Emily ainda estava confusa. – Chelsea? O que você está falando?
- Meu Deus, Emily. – Chelsea lançou um olhar irritado na direção da amiga. – Você não vê o que ela está tentando fazer? Está tentando roubar o Joe debaixo do nariz de Miley!
- Joe não é o namorado de Miley – falei bruscamente, tanto para minha surpresa quanto para a de qualquer pessoa. A vendedora parou de contar meu troco, me olhando perplexa. - O que quero dizer – falei num tom mais suave –, é que Joe não gosta de Miley. E nem de mim. Ele gosta de Petra, certo? Joe e eu somos apenas amigos.
- Até parece – era óbvio que Chelsea não tinha acreditado em mim. Emily, parada atrás dela, apenas continuou parecendo confusa.
- Somos só amigos – repeti, pegando o troco com a vendedora. Esperava que Chelsea não visse que minhas mãos tremiam. – Pode perguntar a ele, se quiser.
- Acho que vou perguntar a Miley – disse Chelsea. – Acho que é o que vou fazer.
- Ótimo – rebati. – Faça isso.
Peguei a sacola que a vendedora estava me estendendo, agradeci, dei as costas ao balcão e fui para a porta.
E derrubei um mostruário de velas.
- Meu Deus – ouvi Emily soltar um risinho, enquanto eu me curvava para pegar o máximo de velas possível antes que rolassem pelo chão. – Você costuma andar muito?
- Deixe que eu faça isso, querida – a vendedora saiu de trás do balcão.
- Sinto muito – estendi uma braçada de velas para ela. – Sou desajeitada demais.
- Bobagem – respondeu a vendedora com gentileza. – Poderia ter acontecido com qualquer um. Ande, ponha isso aqui. – Ela me ajudou a colocar as velas no balcão. – Pronto. Não foi nada. Ah, e leve isso. Você
quase esqueceu.
Ela pegou no bolso da saia uma coisa enrolada num quadrado de papel de seda e estendeu para mim.
- O que...? – Estendi a mão automaticamente e peguei o quadrado de papel. A coisa dentro fez um leve barulho chacoalhado.
- Só uma coisa que acho que você vai precisar em breve – o olhar dela foi na direção de Chelsea e Emily. – Para dar sorte. Bênçãos para você, irmã.
Agora meu embaraço era completo. Enfiei o objeto embrulhado em papel de seda na sacola junto com o livro, murmurei um "Obrigada" e disparei para fora da loja...
... e continuei pela rua como se estivesse sendo perseguida.
- Ei – gritou Joe, correndo atrás de mim. – Devagar, certo? O Desafio Físico Presidencial acabou, lembra?
- Desculpe – falei, tendo o cuidado de não olhar para ele. – Ah, meu Deus. Estou tão sem graça!
- Por quê? – Ele acertou o passo comigo. Como ele podia não saber? Ele não tinha...
Ah, certo. Ele não estava lá. Graças a Deus. Graças a Deus.
- Nada – respondi, sentindo-me quase rindo de alívio. – Depois que você saiu eu... eu trombei num mostruário de velas e derrubei tudo.
- Só isso? Achei que você estava falando da coisa com as amigas de Miley, de elas pensarem que a gente anda saindo junto.
Congelei. E olhei para ele. Devagar.
Seus olhos castanhos estavam rindo para mim.
- O que foi? Acha que não sei da paixonite de Miley por mim?
O balão no meu estômago inchou até o tamanho de uma melancia.
- Você não pode falar nada disso com ela – soltei num jorro. – Não pode dizer que sabe. E é mais do que uma paixonite, Joe. Ela ama você, é sério.
- Me ama, é? Parece que ela quer ser mais do que amiga... com benefícios.
Ele estava rindo. Não dava para acreditar que ele estava rindo.
- Joe. Você não entende. Ela não está brincando. Ela...
Quase contei. Sobre o boneco. Não sei exatamente o que me impediu. Só que senti que Miley merecia ficar com um pouco de dignidade, apesar do comportamento idiota.
- Ela poderia tornar a vida realmente desconfortável para mim – falei em vez disso. – Se ela achasse... bem, que você e eu...
Joe parou de rir. A próxima coisa que percebi foram as mãos dele nos meus ombros.
- Ei – ele me deu uma pequena sacudida. – Anime-se, prima Demetria. Eu só estava brincando. A última coisa que eu iria querer no mundo seria tornar a vida mais difícil para você. Sei que é duro ser filha de uma pastora. Deve ser mais difícil ainda começar numa escola nova e morar com uma nova família além do... bem...
Ele não disse a palavra perseguidor em voz alta. Não precisava. Nós dois sabíamos do que ele estava falando, ainda que nenhum de nós tivesse jamais mencionado isso desde aquela primeira vez em que Miley abriu o bico de modo tão casual, no dia da minha chegada.
- Além disso – Joe tirou as mãos de mim. – O que importa? Considerando por quem eu devo estar apaixonado, lembra?
Estranhamente, essa lembrança, em vez de cravar uma estaca de ciúme no meu coração mais uma vez, me animou... um pouquinho.
- Isso mesmo. Quero dizer, é totalmente ridículo essas garotas acharem que a gente está namorando, quando seu coração pertence a outra.
- E não a qualquer outra. Mas o melhor pedaço de mulher do planeta - ok, agora a estaca de ciúme foi cravada, mas eu já havia me acostumado a parecer indiferente.
- É. Se elas disserem a Miley que nos viram, vou lembrar a ela que Petra é seu único amor verdadeiro.
- E eu não terei opção além de apoiar você. Servidão eterna, lembra?
Sentindo-me mil vezes melhor, virei-me para seguir pela rua, girando a bolsa da Encantos...
... e ouvi a coisa que a vendedora tinha me dado chacoalhar de novo.
Parei, enfiei a mão na bolsa e comecei a desembrulhar.
- O que é isso? – perguntou Joe.
- Não sei. Algum tipo de amostra grátis ou algo que a moça que trabalha lá me deu...
Mas então vi o que o embrulho continha e parei, tão abruptamente que quase fiz com que Joe me derrubasse.
- O que é? – Joe olhou para o que eu segurava. – Ah, legal. Ela deu um símbolo satânico a você. Excelente serviço aos clientes.
- Não é um símbolo satânico – falei com a voz tensa. Nos raios oblíquos do sol poente, o colar de prata piscava no ninho de papel de seda. – O pentagrama é um símbolo mágico antigo, destinado a oferecer proteção espiritual para quem usa. Não tem nada a ver com Satã.
Joe falou em voz gentil:
- Ei, Demi. Eu estava brincando de novo, certo?
Horrorizada ao sentir meus olhos se enchendo de lágrimas ali na calçada, diante de uma pequena loja de piercings, enfiei o colar de novo na sacola e a apertei contra o peito.
"Para dar sorte", ela dissera. "Só uma coisa que acho que você vai precisar em breve".
Como ela sabia?
Mas uma pergunta melhor era: o que ela sabia e eu não?
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Bom gente, é isso. O que estão achando da fic nova? E o que acharam desse capítulo?
Até semana que vem, ou talvez quarta, quem sabe... Mas, como quarta nunca é certeza, até sábado, com o final de Inspiration. Espero que gostem e, como será postado no sábado dia 11, na quarta dia 15 que terá a mudança de layout e um post sobre tudo que mudou no blog.
Espero que gostem.
~xoxo
Oi Tatii! Sou o Rui do Críticas de Fanfics, a quem inscreveu a sua shortfic.
ResponderExcluirEstive procurando por essa shortfic no seu arquivo do blog.
É este o link: http://inspiration-tatis.blogspot.pt/2012/06/summer-love.html ?
Beijos.
Sim, é esse mesmo *-* Vou mandar um comentário lá no CDF (:
ExcluirBeijos :*