- Sai da minha frente.
Desviei-me para a esquerda da pista e ouvi outra pessoa rosnar atrás:
- Ei, dá o fora.
Saí rapidamente e os corredores passaram por mim. Todos estavam passando por mim. Sei que não sou a pessoa mais atlética do mundo, nem nada, mas aquilo era ridículo.
Na verdade a coisa toda era ridícula. O sistema escolar lá em Iowa exige só um ano de educação física no ensino médio, e eu tinha feito o meu no primeiro ano.
Na escola Chapman, por acaso, só o último ano está livre da educação física. O que é ótimo, como a obesidade está tomando conta dos Estados Unidos, é importante ficar em forma, e coisa e tal.
Mas foi assim que eu me vi, no primeiro dia na nova escola, molengando no caminho de terra ao redor do reservatório do Central Park – porque a escola Chapman não tem ginásio esportivo, de modo que fazem as aulas de educação física no parque mais famoso do mundo, com camiseta branca e um short azulão que, na minha opinião, era vergonhosamente curto. Como se não fosse suficientemente ruim eu ser a pior corredora do mundo, ainda preciso parecer idiota fazendo isso.
É típico da minha sorte.
- Anda – ofegou alguém atrás de mim. E acelerei. Desta vez foi uma garota loura com asas nos pés que passou correndo. Olhei seu rabo-de-cavalo balançando e desaparecendo numa curva suave da trilha e me perguntei o que existia em mim que já havia me tornado uma pária social na escola Chapman.
A princípio achei que não poderiam ser as roupas que me tornavam tão pária, afinal, todo mundo na Chapman tem de usar uniforme.
Então eu percebi que deviam ser as jóias – ou a falta delas. A maioria das garotas das turmas em que estou – inclusive a loira que havia acabado de passar por mim – tinha brincos de diamante, alguns do tamanho das minhas unhas do mindinho. Duvido tremendamente que fossem zircônios.
E os relógios... eu tinha ficado pasma ao saber que o de Miley era um Gucci. Taylor tinha um Rolex. Ninguém na Chapman parece ter ouvido falar em Swatch ou Timex.
E ainda corriam usando tudo isso, o que era mais impressionante.
Na minha antiga escola, as poucas pessoas que usavam esses acessórios tinham que tirá-los para fazer esse tipo de aula. O que, ao que parece, é bem diferente aqui.
E parece que os mocassins da Nine West não são considerados adequados para uma aluna da Chapman. Mesmo que a única diferença que eu possa detectar entre meus sapatos e os Ferragamos de Miley seja uns quatrocentos dólares, há algo errado com os meus, enquanto os dela são bem-vindos. Parece que o fato de meus sapatos serem do lugar errado e eu não usar jóias caras, junto com o hematoma gigante na testa – sempre um acessório atraente – e minha completa incapacidade de entrar ou sair de uma sala de aula sem tropeçar ou trombar em alguém ou em alguma coisa deviam ser os principais motivos para meu status de fracassada.
No fim das contas, mesmo tão longe de casa, eu não conseguia escapar do apelido, pois foi assim que Miley me chamou, com desprezo, quando larguei uma lata de refrigerante – que explodiu imediatamente – durante o almoço no refeitório no meu primeiro dia, e todo mundo, desde então, seguiu seu exemplo, me chamando de Jinx.
Jinx. Sempre vou ser Jinx.
"Você não é uma nota de cem dólares", é o que vovó gostava de dizer a nós, as crianças, durante suas freqüentes visitas vinda de sua comunidade de aposentados na Flórida. "Nem todo mundo vai gostar de vocês".
Imagine se esse não era o maior eufemismo do ano. Como se já não fosse suficientemente difícil ser filha de uma pregadora protestante. Quero dizer: as pessoas esperam que você seja uma princesa ou uma vagaba total, como o personagem de Lori Singer em Footloose: Ritmo Louco.
E era como se as pessoas simplesmente... soubessem sobre essa coisa de ser filha de uma pastora. Talvez realmente fosse minha aparência de frescor campestre. Talvez fosse o violino – eu havia entrado para a orquestra da escola, a única aula em que eu parecia remotamente me ajustar... se bem que houve um abalo quando consegui de cara o posto de segundo violino. Como se fosse minha culpa eu ser uma nerd que gosta de ensaiar.
Ou talvez fosse minha falta de familiaridade com Kanye West, The Hills e outras músicas e seriados que não temos permissão de ouvir ou assistir na minha casa, por causa dos meus irmãos mais novos.
O que quer que fosse – todas as opções acima ou algo que eu ainda nem havia pensado – era como se alguém tivesse carimbado PERDEDORA na minha testa, e a maioria da população estudantil reagiu de acordo.
Mas pelo menos aqui na vastidão do Central Park não havia muita gente para me ver fazendo besteira, tropeçando numa raiz de árvore enquanto corria ou sei lá o quê. Claro, era minha sorte ter começado na escola no primeiro dia do Desafio Físico Presidencial, parte do qual implicava uma corrida com tempo marcado. Eu realmente achei que o professor de educação física estava brincando quando apontou para o reservatório – que na minha opinião parece um lago – e nos informou que iríamos dar duas voltas ao redor dele.
O cara estava brincando?
Parecia que não, porque o resto da turma – com tantas pessoas, e todas vestidas do mesmo jeito, e eu tão tímida, não querendo encarar ninguém, nem pudera dar uma boa olhada em nenhum deles para avaliar a concorrência, por assim dizer – partiu à toda pela trilha de terra. Tive de me apressar para acompanhá-los.
Mesmo assim não foi completamente desagradável. Era estranho estar no meio daquela selva – com árvores tão grossas a toda volta – e ainda assim conseguir ver os arranha-céus acima dos galhos mais altos.
E havia outras pessoas na trilha, além da minha turma. Havia turistas curtindo um passeio no parque com suas pochetes e máquinas fotográficas e grupos de crianças pequenas, indo com seus professores visitar o Museu de História Natural. E até mesmo cavaleiros vestindo culotes e capacetes pretos, trotando ao lado do pessoal que corria.
Na verdade era, de certa forma, legal.
Bem, a não ser pela parte de correr.
E, então, a voz de um cara disse atrás de mim:
- Ei.
Pensando que era mais alguém querendo que eu saísse da frente – mesmo eu estando no canto da pista, quase saindo dela – olhei para trás, chateada. E tropecei numa raiz.
- Uau. – O corredor diminuiu a velocidade e se curvou. – Você está legal, prima Demetria de Iowa?
Eu não havia caído. Pelo menos. Tinha tropeçado, mas não caído de cara, nem me machucado, pela primeira vez. Estiquei as costas e disse, esperando que ele não pudesse ver como meu coração estava disparado, e não era só por causa do exercício, ao mesmo tempo que tentava não dar um sorriso largo demais:
- Oi, Joe.
Ele riu para mim. Como eu, Joe vestia camiseta branca. Mas, ao contrário de mim, seu short azulão não parecia curto demais. Parecia perfeito.
Mais do que perfeito. Parecia fantástico!
- Não sabia que você estava nesta turma – franzi a sobrancelha. – Por que você está nesta turma? Achei que era mais adiantado.
Joe deu de ombros.
- A Chapman exige três anos de educação física. Portanto, aqui estou.
- Ah – respondi com inteligência.
Alguns corredores vieram fazendo a curva a toda velocidade. Joe me segurou pelo braço e me puxou para fora do caminho, entrando no meio do mato baixo.
Agradesci mentalmente por ele ter feito isso, caso contrário, eles teriam me atropelado e eu estaria com a cara no chão.
- Nossa – ele olhou os corredores, claramente chateado. – O que eles acham que isso é, os Jogos Olímpicos?
- Bem... – Eu não conseguia pensar em mais nada para dizer. – Acho melhor a gente se juntar a eles, se não o presidente vai ficar desapontado com nossa falta de forma física.
Joe olhou o relógio. Não pude ver se era um Rolex, como o de todo mundo na Chapman. Mas parecia bem impressionante.
- Vou lhe dizer uma coisa. Não acredito que o presidente esteja preocupado com minha forma física. Vamos sair daqui.
Olhei de volta para a pista.
- Mas se a gente não terminar a corrida...
- Ah, vamos terminar – Joe ainda ria. – Vamos chegar bufando junto com os melhores. Só que conheço um atalho...
Olhei para a trilha de terra, depois de novo para Joe. Nunca na vida matei aula. Quero dizer, minha mãe é pastora.
Mas então meio que caí na real: mamãe não estava exatamente por perto. Felizmente o nó no meu estômago – que estivera crescendo e encolhendo o dia inteiro, dependendo das circunstâncias – aparentemente havia adormecido nessa hora... mas eu não fazia idéia se era por causa da presença de Joe, ou apesar dela. Por isso, acabei concordando:
- Bem, está certo. Se você promete que a gente não vai se encrencar. Não quero confusão no meu primeiro dia.
Ele levantou três dedos.
- Palavra de escoteiro.
Sorri.
- Duvido que você tenha sido escoteiro. Aposto que nem existem escoteiros em Nova York.
- Bem, provavelmente existem, mas você está certa. Nunca fui.
Em vez de nos levar para as profundezas selvagens do parque, como eu havia temido, o atalho de Joe nos conduziu para uma calçada pavimentada que não estava exatamente apinhada, mas que tinha sorveteiros e turistas suficiente para me deixar à vontade. O melhor foi que Joe foi direto até um sorveteiro e se virou para me perguntar:
- Qual vai ser?
Parei para olhar as fotos na lateral do carrinho. Não reconheci quase nada. Até o sorvete em Nova York é diferente.
- Ih – falei olhando um enorme picolé vermelho, branco e azul. – O que é isso?
- Dois Jetstar Jumbo – Joe informou ao sorveteiro. Depois virou para mim e falou: – Também conhecidos como Foguetes. Não acredito que você nunca tomou um. O que vocês tomam lá em Iowa? Sorvete de batata?
Ofendida em nome do meu estado, respondi indignada.
- Isso acontece em Idaho. E existe um monte de sorvetes bons em Iowa. Como as casquinhas com calda de cereja.
Joe deu de ombros.
- Aposto que vocês não têm gelato.
- Claro que temos.
- E eu sei o que é uma casquinha com calda de cereja. Também sei que é nojento, e certamente não é algo que eu iria me gabar por ter ingerido. – O vendedor entregou os dois picolés a Joe que lhe passou uma nota de cinco dólares que tirou da meia de ginástica. E foi então que percebi que eu estava sem dinheiro.
- É por minha conta – disse Joe, quando falei isso. Depois me entregou um Jetstar Jumbo com um floreio elegante. – É o mínimo que posso fazer, considerando que você salvou minha vida. Se estivéssemos na Antiguidade, acho que eu lhe deveria servidão eterna, ou algo assim.
Senti que estava ficando tão vermelha quanto o topo superior do picolé na minha mão.
- Não salvei sua vida.
- É? – Joe achou divertido. – Como quiser, então. O que achou do Foguete?
O gosto era igual ao de qualquer outro picolé que eu já havia tomado, mas, para ser educada, falei:
- Muito bom.
- Eu te disse.
Na verdade, o picolé estava me refrescando um pouco. Fazia calor, para abril, e agora que havíamos saído da sombra das árvores, o sol batia forte. O tempo quente havia trazido os patinadores para a rua, além de sorveteiros e babás empurrando carrinhos de neném. Vi até algumas pessoas tomando banho de sol.
- Então – comentou Joe enquanto passeávamos. – Seu hematoma está melhor.
Pus a mão na testa, sem jeito. Joe só estava sendo gentil, claro. O hematoma, no mínimo, parecia pior do que nunca. Joe o tinha visto na véspera, quando ele e os pais foram à casa dos Pitt para ver como eu estava. Para meu vexame completo e absoluto, eles haviam trazido duas dúzias de rosas que me presentearam com agradecimentos pelo que achavam que eu tinha feito por Joe.
Tentei ser graciosa, como mamãe desejaria. Mas era difícil. Quero dizer, todo mundo – não somente Miley – achava que eu tinha feito um negócio gigantesco, nobre, me jogando no caminho daquele ciclista descontrolado. Quando, na verdade, eu só empurrei Joe para longe e tive o azar de ficar no lugar errado. Quer dizer, foi uma boa ação... mas não foi algo tão incrível assim. Durante todo o tempo em que Joe e seus pais estiveram lá, eu só queria que um buraco se abrisse no piso de parque dos Pitt e me engolisse viva. Os pais de Joe eram super chiques, o pai era advogado do show business, a mãe, advogada tributária, e sem dúvida eram pessoas muito legais.
Mas eu teria preferido mil vezes que eles tivessem ficado em casa. Nem de longe sou a pessoa mais sociável do mundo, e fiquei tremendamente desconfortável sendo o foco de tanta atenção.
Era péssimo, na verdade, que tenha sido eu, e não Miley, a estar lá quando o ciclista quase acertou Joe. Se Miley, e não eu, tivesse salvado Joe, ela adoraria a agitação, as rosas, a preocupação. Em vez disso, ela fora obrigada a curtir tudo aquilo em segunda mão, encostada na parede com um joelho envolto na meio-arrastão, meio dobrado, e um minúsculo sorriso felino nos lábios, olhando enquanto eu respondia desconfortavelmente às tentativas educadas de conversa da parte dos pais de Joe, parecendo se divertir com isso.
Joe, por sua vez, ficou no sofá branco da sala íntima dos Pitt com uma Coca aninhada nas mãos, contribuindo pouco, mas sorrindo um bocado. Mais tarde Miley observou que Joe estivera olhando o tempo todo para o joelho dela. Porque, sabe como é, ele é tão doido por ela, ou sei lá o quê, por causa daquele boneco.
Tive uma impressão um tanto diferente – que Joe estivera olhando para mim. Porque toda vez que eu levantava os olhos o olhar dele parecia encontrar o meu.
Mas não falei isso com Miley. E era bem provável que eu estivesse errada, e ele estivesse mesmo olhando o joelho dela.
Mesmo assim, todo mundo teve oportunidades suficientes de olhar meu hematoma, analisar o tamanho e a cor, e avaliar quanto tempo demoraria para sumir. Quase considerei a idéia de refazer as malas e voltar para Iowa. Não que eu fosse realmente fazer isso, é claro.
Mas isso me fez sentir saudade da minha família, que aceita numa boa meus esbarrões absurdos com o destino (e coisas como mensageiros de bicicleta). Nem mesmo ler e responder os vários e-mails da minha melhor amiga, Selena, no laptop que tio Brad me emprestou mais tarde naquela noite, ajudou.
Mas, então, me lembrei de que ganhar de presente duas dúzias de rosas dos pais de um garoto por quem, posso muito bem admitir, eu estava meio caidinha – e que eu sabia que nunca gostaria de mim porque estava caidinho por uma bela au pair alemã – era infinitamente melhor do que em geral acontecia na minha cidade.
Agora olhei para meu Jetstar Jumbo, desejando mais do que nunca que, há tantos meses, eu tivesse feito uma escolha bem diferente, e disse:
- Obrigada.
- O que ainda não deduzi – Joe continuou, enquanto passávamos por um laguinho onde pessoas (até alguns homens adultos) brincavam com pequenas miniaturas de barcos – é por que todo mundo na sua família chama você de Jinx.
Suspirei.
- Acho que é perfeitamente óbvio, depois do que aconteceu. Eu sou um imã de azar. Na verdade, desde que nasci, onde quer que eu esteja... bem, as coisas parecem sempre dar errado. – Contei sobre a tempestade que se formou no momento exato em que nasci, e as pessoas que tiveram de ser levadas de helicóptero para o hospital do outro condado porque toda a energia elétrica pifou.
- O médico que fez o parto brincou dizendo que deveriam me chamar de Jinx, e não de Demetria – prossegui. – E todo mundo achou muito engraçado, por isso o apelido pegou. Infelizmente.
Joe deu de ombros.
- Bom, não é tão ruim. Meu pai tem uma cliente que nasceu com um monte de cuspe na boca, por isso todo mundo a chama de Bolhão. Poderia ser pior.
- Acho que sim.
Mas duvido que Bolhão tenha passado o resto da vida com saliva borbulhando na boca, ao passo que meu azar ainda não acabou, e já se passaram 16 anos.
O que me lembrou de uma coisa que eu queria perguntar a Joe, se eu esbarrasse com ele de novo.
- A minha prima Miley – comecei hesitando. Porque, claro, mesmo sabendo o que Miley sentia por ele, não sabia como Joe se sentia com relação a ela. E acho que eu nem queria saber. Lembrei-me de como ele tinha ficado surpreso quando Robert falou de sua queda por Petra... e da queda de Miley por ele.
- Siiiiim? – Ele esticou a palavra a ponto de ficar com várias sílabas.
- Ela usa... é... drogas... sempre? Quero dizer, tipo: é um problema? Ou só uma curtição? Não que eu vá dizer alguma coisa aos pais dela – acrescentei depressa. A outra coisa ruim de ser filha de pastora é que todo mundo presume automaticamente que você é dedo-duro. – Mas se for sério...
- É difícil ser filha de pastora – Joe jogou uma moeda, que ele havia encontrado, no laguinho perto do qual estávamos. – Não é?
Uau. Fiquei vermelha. Era como se ele estivesse lendo meu pensamento.
- É. Algumas vezes é – senti meu coração acelerar de novo. Fica fria, Demi. Ele está apaixonado por Petra, com quem você nunca poderia competir.
Mesmo se quisesse. Mas não quer, porque ela é sua amiga.
Ta bom, talvez queira sim.
- Foi o que pensei. Não conte a ninguém, vai destruir a minha reputação, mas Seventh Heaven era meu seriado predileto quando eu era criança. – Ele piscou.
Ri. Eu gostava de como parecia que, quando eu estava com ele, o nó no estômago aparentava sumir.
- Na verdade não é assim – falei. – Pelo menos não é tão mau. Eu só... estou preocupada com ela.
- A maior parte do que sua prima Miley diz e faz, ela diz e faz para ganhar atenção. Sua tia e seu tio são pessoas ocupadas, e Miley gosta de um drama, caso você não tenha notado. Acho que ela acha que tem de ir aos extremos para ser notada. Tipo esse lance de ser bruxa.
A dor no meu estômago voltou, mais forte ainda. Uau. E eu que tinha pensado que ela sumia quando Joe estava perto.
Ele sabe sobre esse negócio de Miley e as amigas brincarem de ser bruxa?
- Ah – meu coração ficou descontrolado, em vez de acelerar. E não de um modo bom, como sempre ocorria estando com Joe. – Você sabia disso?
- Fala sério! Acho que Miley se certificou de que a escola toda soubesse. Ela e aquele coven. Uma vez elas chegaram a levar um caldeirão para a escola, para fazer uns feitiçozinhos no refeitório. Só que dispararam o alarme de incêndio. O diretor Baldwin ficou puto. Miley tentou fazer um alarde, dizendo que ele estava impedindo que ela praticasse sua religião. Como se bruxaria fosse religião.
- Na verdade – falei, incomodada pelo jeito dele –, pode ser. Mas você não deveria misturar o que Miley e as amigas dela estão fazendo, isso de brincar de ser bruxa, com bruxaria de verdade. As bruxas de verdade não fazem feitiços para atrair atenção, e sim porque isso lhes dá realização espiritual. E a bruxaria, se for bem-feita, tem mais a ver com agradecer à natureza, e demonstrar apreciação por ela, do que tentar dominá-la ou... ou fazer coisas aparecerem por magia.
- Não diga que você também é uma delas – o tom dele era de desaprovação.
- Não sou – garanti, depressa. – Mas um dos efeitos colaterais de ser filha de pastora é ter um interesse pelas práticas espirituais. Todas as práticas espirituais. Posso lhe falar sobre xamanismo, também, se você quiser.
- Fica para a próxima. Acho que isso significa que vou ter de aceitar sua palavra no quesito espiritual. Mesmo assim, não posso deixar de pensar que sua prima não está nessa, por algum motivo tipo Nova Era, porque virou comedora de granola e coisa e tal, e sim porque é a nova moda no grupinho social dela.
- Acho que para Miley a coisa é um pouco mais profunda do que isso – falei, pensando em como ela havia ficado com raiva de mim durante a conversa sobre nossa ancestral, Branwen, na primeira noite que passei em Nova York. – Mas fico aliviada porque você acha que ela não tem problemas. Quero dizer, com as drogas.
- Com toda a sinceridade, acho que Miley é inteligente demais para perder o controle desse jeito. Acho que muito do que você viu no caramanchão naquele dia foi só... bem, para se mostrar.
Para ele. Joe não disse, mas para quem mais Miley estaria se mostrando? A questão era: ele sabia?
Achei que poderia ser melhor mudar de assunto, porque a última coisa que eu queria era ser acusada por Miley de falar dela pelas costas – e esse tipo de coisa costuma voltar para as pessoas –, por isso, perguntei:
- Então, onde você esteve durante o intercâmbio?
As descrições de Joe sobre as paisagens e os sons de Florença, na Itália, nos levaram até a esquina da Quinta Avenida com a rua Oitenta e Nove, onde o professor Winthrop, de educação física, estava esperando com seu cronômetro. Jogamos os picolés longe – eu só havia conseguido chegar à parte branca do meu Foguete, e nem tinha provado a azul – e fiz alguns alongamentos para preparar nossa grande chegada. Então, agachados atrás de alguns arbustos, esperamos até que um bando de corredores com shorts azulões viessem na nossa direção. Então corremos para nos juntar a eles...
... e partimos na direção do professor Winthrop e o cronômetro, ofegando tanto quanto se tivéssemos corrido quinze quilômetros, e não apenas uma fração minúscula de um.
- Excelente, Jonas – o professor jogou uma toalha na direção de Joe. – Você cortou um minuto inteiro do tempo que fez no segundo ano.
Não consegui mais conter um ataque de riso, em especial quando Joe disse em tom sombrio, pendurando a toalha no pescoço:
- Obrigado, professor. Andei treinando um bocado.
Mais tarde, enquanto voltávamos para a escola, Joe me encontrou no grupo de garotas que tentava ir para o vestiário feminino para trocar de roupa, e perguntou:
- Ei, Demi, já experimentou souvlaki?
- Não. – Senti que eu estava ficando vermelha porque, claro, as outras garotas se viraram para ver com quem ele estava falando.
- Ah, cara – Joe sorriu, misterioso. – Amanhã vamos experimentar o souvlaki. Prepare-se para curtir. – E, sem dizer mais nada, ele se enfiou no vestiário masculino.
Uau. Então Joe estava planejando me levar para um souvlaki amanhã durante o tempo de aula.
O que era uma espécie de encontro.
Bom, certo, talvez não, porque provavelmente ele só estava fazendo isso para compensar aquele negócio de eu ter salvado sua vida.
Mas mesmo assim.
Só quando eu havia tomado banho e ia para a próxima aula entorpecida como num sonho foi que me lembrei de que Joe não era exatamente um homem livre. Quero dizer, se os boatos fossem verdade, ele estava apaixonado por Petra...
... e minha prima estava loucamente apaixonada por ele.
Louca o bastante para fazer um boneco dele e cravar alfinetes.
O que significava que, se eu fizesse alguma coisa para desagradá-la, tipo ir para um souvlaki com o cara de quem ela gostava, nada iria impedi-la de fazer a mesma coisa comigo.
Não que aquilo com o boneco fosse dar em alguma coisa, mas mesmo assim não era uma coisa legal.
E eu tinha certeza de que não seria meus pensamentos que ela estaria furando.
No entanto, lembrando o modo como os olhos castanhos de Joe haviam rido para os meus na linha de chegada da educação física naquele dia, descobri que nem me importava. Não me importava se Miley tinha uma obcessão por ele. E não me importava se ele, por sua vez, amava Petra. Pois ele havia me chamado para um souvlaki, e não elas.
Para ver como eu tinha ido longe.
Seria de imaginar, dada minha experiência de vida, que eu reconheceria os sinais de alerta.
Mas isso só serve para mostrar como minha sorte é um horror.
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